A espada mágica de Freyr
Freyr era um deus da raça dos Vanir, contraposta a dos primitivos Aesir, dos quais
o poderoso Odin era o líder. Desde sempre os aesires haviam relutado em admitir a
companhia dos vanires, considerados por eles como “deuses inferiores”. Durante muitas
eras, estas duas classes de deuses guerrearam entre si, até que se firmou um tratado de
paz. Houve, então, uma troca de reféns, na qual coube aos vanires remeter aos antigos
adversários três de suas divindades: Freyr, deus da fertilidade; sua irmã Freya, deusa do
amor; e Niord, pai de ambos e deus do mar.
Estas três divindades foram muito bem recebidas em Asgard e, desde então, ali se
estabeleceram amigavelmente.
Freyr sempre teve sua imagem associada a três prodígios oriundos das mãos de
operosos anões: o javali Gullinbursti, que possuía cerdas douradas; o navio Skidbladnir,
que além de navegar, era capaz de voar e ainda podia ser dobrado e colocado dentro do
bolso do deus, como um lenço. Mas, de todos os prodígios associados à fama de Freyr,
nenhum foi mais admirado – e justamente temido – do que sua espada milagrosa. Esta
arma maravilhosa tinha o dom de destruir sozinha os inimigos de seu dono.
Freyr achava-se sentado sobre Hlidskialf, o trono mágico de Odin, de onde podia
avistar todo o universo. Aproveitando a ausência dos mais poderoso dos deuses, ele
contemplava, dali, a vastidão dos nove mundos, desde as profundezas de Niflheim até os
confins gelados de Jotunheim, a terra dos gigantes. Ali, deteve seu olhar durante um
longo tempo, até que a certa altura avistou um linda jovem com sua longa cabeleira
dourada a esvoaçar sob o vento gélido que descia das montanhas encapuzadas pela
neve.
- Justos céus! – exclamou ele, maravilhado. – Quem é esta beldade?
Freyr ficou possuído por um desejo incontrolável pela bela criatura e, desde então,
perdeu o sossego a ponto de não conseguir mais dormir.
- O que está havendo, que anda tão abatido? - disse-lhe um dia Skirnir, seu fiel
servidor. - Faz dias que não come e mal bebe o seu hidromel! Anda o dia inteiro de um
lado a outro, sinal de que está às voltas com um grande problema.
- E, realmente, estou!... - disse Freyr, feliz por encontrar alguém para desabafar. -
Ah, Skirnir, desde que pus os olhos no longínquo reino dos gigantes e vi lá uma bela
jovem a passear pelos campos gelados, perdi o sossego! E o pior de tudo é que não sei
quem ela é nem o que hei de fazer para conquistá-la...
Skirnir ficou observando o estado lamentável em que seu senhor se encontrava, e,
pelo tom pálido de suas faces, pôde comprovar, que, realmente, ele estava perdidamente
apaixonado.
- Skirnir, preciso de um grande favor seu! - disse Freyr, em desespero.
O criado sentiu que estava prestes a arrumar uma bela encrenca.
- Quero que vá até Jotunheim e descubra quem é aquela adorável jovem!
Skirnir ficou mais pálido do que o próprio deus. Afinal, ter que enfrentar uma viagem
por terras inóspitas e fazer frente ao provável ataque de uma legião de gigantes não era
uma perspectiva nada agradável.
Freyr, percebendo o receio que se desenhava no rosto do servidor, fez-lhe, então,
uma oferta intempestiva:
- Emprestarei a você, fiel Skirnir, o meu maior bem: a minha valiosa espada!
"A espada mágica de Freyr...!", pensou o servo, sem poder acreditar. Num instante,
os seus receios evaporaram.
- Está bem, eu irei! - disse ele, quase eufórico.
Freyr, no entanto, sentia que acabara de cometer uma terrível imprudência.
"Separar-se de sua espada mágica?", dizia num tom de censura uma voz dentro de si. Ele
nunca fizera isto antes, e aquela mesma voz interior parecia lhe dizer que, se o fizesse,
nunca mais tornaria a vê-la. Mas, afinal, o seu desejo pela jovem venceu a sua reticência
e ele autorizou a partida de seu criado.
- Vá em frente e me traga de qualquer jeito a jovem!
- Deixa comigo! - disse Skirnir, que já se sentia feliz por poder dar início àquela que,
sem dúvida, seria a maior de suas aventuras.
Skirnir partiu para sua longa viagem, sentindo-se orgulhoso como um deus. Durante
longos dias e noites, cavalgou pelas vastidões dos nove mundos, escutando com infinito
deleite a espada retinir de encontro ao estribo, até que a paisagem começou a se tornar
verdadeiramente gélida e sombria. Sobre a sua cabeça, massas imensas de nuvens
escuras e carrancudas faziam cair alternadamente torrentes de uma chuva gelada ou de
uma neve pesada como chumaços compactos de algodão. Com o capuz puxado até o
nariz e o vermelho manto enrolado duas vezes sobre si, Skirnir substituiu a cavalgada ágil
de seu cavalo por um trote cauteloso ao se aproximar da temível morada dos gigantes.
Após fazer algumas investigações, descobriu que a jovem se chamava Gerda e que
morava no castelo de seu pai Gymir. Skirnir dirigiu para lá o seu cavalo, sem nunca,
entretanto, descuidar da cautela. Tão logo foi se aproximando, descobriu que motivos
para tanto realmente não faltavam, pois o castelo onde a jovem morava estava cercado
por um muro feito de labaredas gigantescas.
"E esta, agora...!", pensou Skirnir, puxando as rédeas do cavalo, que escarvava
impacientemente a neve, disposto a se arremessar de qualquer jeito sobre o terrível anel
de chamas.
- É isto mesmo o que você quer? - disse Skirnir, colando a boca à orelha do cavalo.
O animal, como se tivesse entendido perfeitamente as palavras do cavaleiro,
confirmou duas vezes com a cabeça, fazendo com que a neve acumulada em suas crinas
se desprendesse numa pequena chuva alva. Logo em seguida fez uma meia volta e
retornou num ágil galope. Skirnir afrouxou as rédeas o mais que pôde e agarrado ao
pescoço do animal atravessou destemidamente as labaredas. Mas, graças ao galope
velocíssimo, ambos chegaram praticamente incólumes do outro lado, apenas com alguns
ligeiros chamuscos na crina do cavalo e no manto de Skirnir, tendo agora à sua frente as
torres do castelo de Gymir.
Entretanto, sequer tiveram tempo de se recuperar do primeiro desafio, quando viram
surgir em sua direção enormes cães cinzentos, que mais se assemelhavam a gigantescos
lobos; suas goelas escancaradas ladravam de maneira ensurdecedora.
A matilha cercou o cavalo de Skirnir e foi, então, que o jovem aventureiro pôde
conhecer pela primeira vez as virtudes da espada mágica, pois bastou quede desse o
grito de ataque para que ela, sozinha, saltasse da sua bainha prateada e fosse esgrimir
contra os ferozes cães. Num instante, estavam todos os animais caídos sob a neve, com
seus ventres abertos e palpitantes a fumegar sob o vento gélido da manhã.
É claro que esta algazarra toda acabou por despertar a atenção de Gerda, a filha de
Gymir. Correndo até a janela de seu quarto, ela avistou aquele cavaleiro montado no
centro de um círculo de cães mortos, cujo sangue tingia o tapete branco da neve.
- O que quer aqui, forasteiro? - disse ela, alarmada. - Fale ou um exército inteiro
desabará sobre você!
Um silêncio cortado apenas pelo vento assobiante, que passava por entre os galhos
secos das árvores despidas, tornou a situação ainda mais desconfortável.
- O que está esperando? - gritou ela, lá de cima. - Diga, logo, da parte de quem você
vem ou desapareça de uma vez!
Skirnir viu apenas a cabeça dourada dela mexer-se lá no alto, por entre os flocos de
neve que caíam. Sua voz chegou apenas um pouco depois, entrecortada pelo vento. Mas,
ainda assim, ele pôde compreender o sentido de suas palavras.
- Freyr, o nobre deus, deseja lhe fazer um pedido! - gritou Skirnir.
A donzela esteve algum tempo indecisa, mas, finalmente, deu ordem para que
abrissem os portões do castelo.
Skirnir adentrou os imensos corredores do palácio de Gymir. Apesar de verdadeiras
fogueiras estarem acesas noite e dia nas diversas lareiras do salão principal, observou
que, ainda assim, diversos estalactites pendiam, ameaçadoramente, do teto, como
transparentes espadas de gelo. Depois de subir os degraus de uma escada que parecia
nunca mais acabar, Skirnir viu-se diante da porta do quarto.
- Entre, mensageiro - disse uma voz delicada, muito diferente daquela que escutara
aos berros sob o chicote do vento.
Skirnir adentrou a grande peça. Gerda, apesar de estar vestida num elegante manto
de peles, parecia, no entanto, tê-lo feito um pouco às pressas, pois uma das pontas da
gola estava torcida para dentro. Seus cabelos dourados, verdadeiramente belos e
impressionantes, também pareciam algo despenteados e tinham grudados em si alguns
flocos ainda endurecidos de neve.
- Por favor, esteja à vontade e diga, logo, que recado traz de seu senhor - disse
Gerda, dando as costas a Skirnir e indo se sentar um tanto afastada, num assento
comprido e forrado de peles escuras.
- Serei breve, princesa - disse Skirnir, entrando logo no assunto. - Meu senhor quer
tê-la como esposa e pede que considere esta possibilidade.
A princesa arregalou seus olhos azuis e deixou escapar um pedaço de voz sem
qualquer nexo, senão o de que traduzia o seu espanto.
- Casar-se comigo! - indagou, com um sorriso de estupor. - Meu bom criado, não sei
se está ao par do fato de que seu senhor matou meu irmão em uma rixa, há muitos anos.
Skirnir foi pego de surpresa. Um ligeiro tremor sacudiu as suas pestanas, mas ele
estava tão distante da princesa que ela, certamente, não deve tê-lo percebido.
- Minha senhora - disse ele, outra vez, completamente seguro de si. - Meu senhor,
certamente, há de lamentar esta infausta coincidência, mas observe o fato de que ele
jamais o teria feito se, naquela época, já a conhecesse.
A princesa baixou ligeiramente os olhos, como se o argumento a tivesse desarmado.
Skirnir sorriu interiormente do seu primeiro triunfo.
Gerda, por sua vez, sentindo que subterfúgios não dariam resultado, resolveu ser
franca e direta, à boa e velha maneira dos gigantes:
- Meu amigo, sirva-se de uma taça de hidromel, que aí está a seu lado, pois a
viagem deve ter sido muito cansativa.
Mas, antes que Skirnir pudesse fazer o que ela sugeriu, Gerda arrematou:
- Depois que tiver saciado sua sede, pode retornar ao seu senhor e lhe comunicar a
minha negativa.
Skirnir, pego outra vez de surpresa - pois não esperava um enfrentamento tão cedo,
- ergueu-se com seus pertences e se dirigiu até a princesa, num passo respeitoso, porém
decidido.
- Vem apresentar-me suas despedidas, sem sequer provar da bebida? -disse ela,
como que adivinhando que ele tentaria outro expediente.
- Não, adorável princesa, venho mostrar-lhe, apenas, os presentes que meu amo lhe
manda.
Sem esperar por outra recusa, Skirnir estendeu à princesa as riquezas, que fariam a
inveja de qualquer outra no mundo: seis maçãs escarlates, colhidas dos perfumados
jardins de Idun, a deusa da juventude, brilharam diante dos olhos azuis de Gerda. Antes
que ela pudesse dizer qualquer coisa, Skirnir estendeu-lhe lambem Draupnir, o anel
mágico de Odin.
Gerda, apesar de realmente impressionada com os presentes, ainda assim, teve
firmeza bastante para recusar, categoricamente, qualquer compromisso.
- São belos presentes, admito, mas minha resposta é não. Por favor, não insista com
este assunto, não me obrigue a despedi-lo com palavras que fugiriam à cortesia que devo
a um visitante.
Skirnir, perdendo de vez a paciência, resolveu mudar de tática e adotar outra bem
mais agressiva.
- Minha senhora - disse o mensageiro, com o semblante carregado -, a sua
impertinência e teimosia obrigam-me a empregar outro expediente.
Skirnir sacou sua espada lentamente e o ruído rascante do metal a deslizar pela
bainha de prata ecoou pelas paredes do aposento. Depois, mostrou-a à princesa, com um
ar bem diferente do anterior.
- Está vendo esta espada, jovem dama? - disse o mensageiro. - Ela pertence a meu
senhor Freyr e não está acostumada a recusas ou desfeitas. Já cortou, posso lhe
assegurar, a cabeça de mais de um gigante atrevido.
- Ótimo! - disse a princesa, sem se intimidar. - Esperemos a chegada de meu pai e
de seus exércitos para que teste, novamente, o gume de sua espada!
Skirnir, mandando às favas o resto de fidalguia, decidiu fazer uso, então, de seu
último argumento - o qual, na verdade, não passava de uma ameaça. Das profundezas de
seu manto retirou uma varinha mágica, que Odin lhe dera, repleta de maldições inscritas
em caracteres rúnicos.
- Seu eu fizer uso desta varinha, arrogante princesa, seu futuro será tão negro
quanto é branca a neve que recobre todos os campos deste país amaldiçoado! - disse
Skirnir, avançando para Gerda, que, pela primeira vez, sentiu o medo agitar suas
entranhas. - A luxúria percorrerá cada membro de seu corpo, mas homem algum desejará
se aproximar de você. Seu fim será a mais negra solidão! A fome corroerá os seus ossos,
mas todo alimento que puser na boca, terá o gosto da água do mar. E, de desgraça em
desgraça, chegará a se transformar na mais repulsiva das feiticeiras, expulsa até mesmo
das regiões sombrias de Hei!
Gerda, intimidada, resolveu, finalmente, ceder à proposta de Freyr.
- Está bem, perverso mensageiro... - disse ela, erguendo os olhos num resto de
dignidade. - Diga a seu senhor que me aguarde daqui a nove noites no bosque de Barri.
- Estou feliz ao ver que a razão retorna ao seu convívio, amável princesa - disse
Skirnir, sem uma única nota de ironia na voz.
Skirnir despediu-se e já retornava, quando cruzou com uma patrulha adiantada dos
gigantes guerreiros de Gymir, que retornavam um pouco à frente do rei. Sem indagar
nada, eles foram logo sacando suas espadas e investindo contra o servo de Freyr, o qual
ordenou de imediato à sua arma que desse combate aos agressores. A espada cumpriu
mais uma vez, brilhantemente, o seu papel. Infelizmente, uma funesta surpresa
aguardava o pobre Skirnir, pois, mesmo após terminada a breve escaramuça - na qual
pereceram todos os gigantes -, a espada não retornou para a sua bainha. Skirnir,
lançando o cavalo em todas as direções chamou por ela durante o resto do dia, porém
sem sucesso: a espada de Freyr havia desaparecido para sempre!
- Justos céus! - exclamou o mensageiro. - E, agora, o que será de mim, quando
chegar ao palácio de meu senhor sem sua espada?
Durante todo o longo trajeto de retorno, ele teve um peso indescritível na alma.
Quem sabe a espada, cansada de defender alguém que não o seu legítimo dono,
resolvera fugir em busca de Freyr, pensava Skirnir, com um fiapo de esperança. Mas
quando finalmente chegou em casa para dar as boas novas do noivado, teve a
desagradável surpresa de não a encontrar com seu antigo dono.
Felizmente, o mensageiro não levara em conta também o fato de que a alegria que
levava era muito superior à tristeza que tinha a esconder, de modo que a reprimenda que
teve de escutar de seu amo não foi, afinal, nem a décima parte do que esperava. Freyr
preferiu deter-se na condição imposta por Gerda, que lhe parecia mais amarga que
qualquer outro infortúnio.
- Uma noite já é bem longa; duas, mais longas ainda. Mas, como poderei suportar
nove infinitas noites?
O tempo passou, afinal, e, no dia aprazado, lá estava a bela Gerda a esperar por
ele, no campo repleto de trigo, com seus cabelos dourados a se confundir com os
delgados talos dos cereais. "Embora, hoje, não haja o vento a esvoaçar seu cabelo,
mesmo assim, ouso dizer que está ainda mais bela e delicada do que naquele primeiro
dia em que a avistei!", pensou Freyr, ao se aproximar, apaixonadamente, da jovem.
Freyr e Gerda foram muito felizes, embora, em algumas noites, ele tivesse sonhos
magníficos com sua poderosa espada, que o tornara um dia invencível. Quando
acordava, porém, suas mãos tocavam a pele macia da esposa a dormir, calmamente, ao
seu lado. Então, Freyr sentia seu coração povoar-se de um misto de tristeza e alegria.
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